domingo, 24 de março de 2019

declaração do primeiro trimestre












“Chegou o meu amor”,
dizes carinhosa quando abro a porta de casa,
cansado com uma carga invisível:
frustrações, insuficiências,
entranhada pequenez
que me controla e afoga.

“Chegou o meu amor”, dizes;
e, por momentos, caio nessa ilusão
de que o que acaba de chegar,
                invadir cada recanto da casa,
                               recobrir as superfícies das coisas,
                                               infiltrar-se nas brechas do soalho,
é, tão somente, o teu amor.



*



No centro do escritório, colocada
logo após a mudança de casa,
uma mesa de campismo:
eis onde escrevo.

Solução inicialmente temporária,
tornou-se permanente e,
agora, afloro o porquê:

                dar corpo às palavras
                é estar sempre pronto para partir.




*




O meu nome completo
tem só duas palavras;

mas no estranho apelido –
que vem do longínquo avô russo,
passa pelo pai argentino
e chega até mim em Lisboa –
há mochilas às costas,
lágrimas em partidas,
muitas milhas percorridas
na procura de um lugar para Ser.


*


Estive sem óculos dois dias,
esquecidos em casa de um amigo.
Tudo ficou mais turvo: linhas frágeis,
cores insípidas e, no fundo do olhar,
um permanente cansaço.

O amigo devolveu-me os óculos.
Linhas, cores, cansaço
continuaram iguais –
não há lentes que valham
quando é da alma a miopia.



*


As ovelhas caminham lentamente,
param, enfiam o rosto na terra,
comem  e voltam a caminhar.

Fazem-no em conjunto,
mas cada uma à sua maneira,
irrepetível.

Assim, na curta planície vedada
que observo desde a piscina do hotel rural,
se joga a perpétua tensão
entre a Singularidade e o Mundo.



*



Na mesa de cabeceira,
um livro sobre o cosmos,
outro sobre a psique.

Lado a lado,
quase parecem discutir
o que é mais fascinante:
se a infinitude externa do Universo,
se a infinitude interna da Alma.