“Chegou o meu amor”,
dizes carinhosa quando abro a porta de casa,
cansado com uma carga invisível:
frustrações, insuficiências,
entranhada pequenez
que me controla e afoga.
“Chegou o meu amor”, dizes;
e, por momentos, caio nessa ilusão
de que o que acaba de chegar,
invadir cada
recanto da casa,
recobrir
as superfícies das coisas,
infiltrar-se
nas brechas do soalho,
é, tão somente, o teu amor.
*
No centro do escritório, colocada
logo após a mudança de casa,
uma mesa de campismo:
eis onde escrevo.
Solução inicialmente temporária,
tornou-se permanente e,
agora, afloro o porquê:
dar corpo às
palavras
é estar sempre
pronto para partir.
*
O meu nome completo
tem
só duas palavras;
mas no estranho apelido –
que
vem do longínquo avô russo,passa pelo pai argentino
e chega até mim em Lisboa –
há mochilas às costas,
lágrimas em partidas,
muitas milhas percorridas
na procura de um lugar para Ser.
*
Estive sem óculos dois dias,
esquecidos em casa de um amigo.
Tudo ficou mais turvo: linhas frágeis,
cores insípidas e, no fundo do olhar,
um permanente cansaço.
O amigo devolveu-me os óculos.
Linhas, cores, cansaço
continuaram iguais –
não há lentes que valham
quando é da alma a miopia.
*
As ovelhas caminham lentamente,
param, enfiam o rosto na terra,
comem e voltam a caminhar.
Fazem-no em conjunto,
mas cada uma à sua maneira,
irrepetível.
Assim, na curta planície vedada
que observo desde a piscina do hotel rural,
se joga a perpétua tensão
entre a Singularidade e o Mundo.
*
Na mesa de cabeceira,
um livro sobre o cosmos,
outro sobre a psique.
Lado a lado,
quase parecem discutir
o que é mais fascinante:
se a infinitude externa do Universo,
se a infinitude interna da Alma.