domingo, 29 de dezembro de 2019

memórias de La Paz







Na minha mão sobre a mesa
pões a tua. São ainda jovens,
estas mãos que amam.

Esqueçamos que um dia 
desaparecerão e, por ora,
entrelacemos os dedos.

Quando menos é esperada,
a eternidade visita-nos
à volta de um café acabado de servir.





sábado, 9 de novembro de 2019

fortuito







Enquanto almoço na esplanada,
ao longe um rapaz acena e aproxima-se,
antes de constrangido voltar para trás,
ciente do seu lapso – não o conheço.

Quem será esse outro
com quem fui confundido?
Quem és, desconhecido semelhante,
recordando-me tudo o que não sou?

Entre o hambúrguer e o café,
perdi a singularidade.








sexta-feira, 20 de setembro de 2019

david, da vida, duvida, dúvida







Tiro a senha, espero
pelo registo criminal;
vem limpo, como sempre.

E esta angústia, as mágoas
que criei, o que quis ser
e não sou, em que parte de mim
registo estes pequenos crimes?




*




Quando entro no quarto devagar
e enquanto dormes tiro a roupa
e fico nu, em pé, quieto,
e tudo está escuro
e quase nenhum barulho vem lá de fora,
quem é este homem que em vão tenta
observar-te,
quem sou eu quando assim
me ignoro?





quinta-feira, 5 de setembro de 2019

Múltiplos eventos diários de índole diversa








Acaba a final da Taça,
buzinas invadem as ruas.

A minha alegria é vã:
nada há de melhor nos verdes
que nos azuis, exceto
eu ser dos verdes.

Festejo, finto a insignificância
e remato a angústia que,
como bom guarda-redes,
agarro sempre de volta.



*



Da beleza, não conheço a essência,
mas a circunstância: deitada, de manhã,
olhas-me nos olhos e adormeces.



*


O casal de idosos
lê um jornal após outro
na mesa de uma esplanada.

Calados, partilham somente 
quietude e notícias.

A sua presença acusa:
a minha correria afugenta
esse encontro em que o tempo
é só um virar de página.





terça-feira, 9 de abril de 2019

abril, águas mil







Se digo “provém do céu,
faz uma airosa e curta viagem
antes de se desfazer para sempre no chão”,
falo das gotas de chuva
ou da vida de mulheres e homens?






domingo, 24 de março de 2019

declaração do primeiro trimestre












“Chegou o meu amor”,
dizes carinhosa quando abro a porta de casa,
cansado com uma carga invisível:
frustrações, insuficiências,
entranhada pequenez
que me controla e afoga.

“Chegou o meu amor”, dizes;
e, por momentos, caio nessa ilusão
de que o que acaba de chegar,
                invadir cada recanto da casa,
                               recobrir as superfícies das coisas,
                                               infiltrar-se nas brechas do soalho,
é, tão somente, o teu amor.



*



No centro do escritório, colocada
logo após a mudança de casa,
uma mesa de campismo:
eis onde escrevo.

Solução inicialmente temporária,
tornou-se permanente e,
agora, afloro o porquê:

                dar corpo às palavras
                é estar sempre pronto para partir.




*




O meu nome completo
tem só duas palavras;

mas no estranho apelido –
que vem do longínquo avô russo,
passa pelo pai argentino
e chega até mim em Lisboa –
há mochilas às costas,
lágrimas em partidas,
muitas milhas percorridas
na procura de um lugar para Ser.


*


Estive sem óculos dois dias,
esquecidos em casa de um amigo.
Tudo ficou mais turvo: linhas frágeis,
cores insípidas e, no fundo do olhar,
um permanente cansaço.

O amigo devolveu-me os óculos.
Linhas, cores, cansaço
continuaram iguais –
não há lentes que valham
quando é da alma a miopia.



*


As ovelhas caminham lentamente,
param, enfiam o rosto na terra,
comem  e voltam a caminhar.

Fazem-no em conjunto,
mas cada uma à sua maneira,
irrepetível.

Assim, na curta planície vedada
que observo desde a piscina do hotel rural,
se joga a perpétua tensão
entre a Singularidade e o Mundo.



*



Na mesa de cabeceira,
um livro sobre o cosmos,
outro sobre a psique.

Lado a lado,
quase parecem discutir
o que é mais fascinante:
se a infinitude externa do Universo,
se a infinitude interna da Alma.