segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

poemas de Buenos Aires







As palavras-bússola
entretecem perenes
o enigma de existir.

Quando as oiço
toda a alma é umbral.






*





Eis uma fé agnóstica:
quando me abraças
rezo ao Deus em que não creio
e peço inaudível
que a vida caiba toda no teu peito.






*





Entro na carruagem do metro
e, do outro lado do vidro,
momentâneos no seu afastamento,
o músico de rua e o vendedor ambulante
sentam-se agora no mesmo banco
da estação vazia.

Descansam,
não mais tocando
nem anunciando.

Partilhada em silêncio
parece divina a solidão.




*




Caminho viajo
procuro pergunto
oiço comparo.


É inevitável a sentença
de eco milenar:
sou estrangeiro
o rosto do Outro é minha pátria.




*




Em Buenos Aires o café é servido
com uma bolachinha e um copo de água.

Perante o insanável fervor
há que adoçar e diluir.




*




Judeu sem Deus,
faço da viagem
a minha permanência.

Resisto à intempérie – 
recolho a pouco e pouco
a voz ténue dos vários que sou.





quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

Querido Marco Aurélio,







falas de um génio interior
que eterno nos sobrevive;
quem me dera conversar contigo
no intervalo das tuas batalhas.

Enquanto escrevo
neste restaurante de bairro
um americano extra large faz
um discurso apologético
sobre um hipotético
mushroom burguer:

teremos sempre,
estimado imperador,
conquistas e utopia
utopia e conquistas.










perspetivas da cidade







Passeio pela cidade
uma tarde por aqui
outra por acolá
vagueando.

Nas duas passo porém
pela mesma capela mortuária.
Diferentes protagonistas,
espetáculo igual:

cá fora
uns choram e outros conversam

lá dentro
os inexistentes relembram
que só os sonhos são imortais.



*



No prédio em frente ao meu
agita-se a trepadeira.

Com frágeis raízes
resiste à ferocidade do vento.

Lados da rua,
jogo de espelhos –
a natureza ascende
observada
por uma alma que sucumbe.






funcionalidade vs. caos







Organizo a escrita:
crio ficheiros
altero versos
consulto cadernos.

Planeio
ideias
textos
livros.

Uma voz subtil
evidencia
inexorável
o tumulto da mente.








inesperado Kant







Oiço na tasca:
“agora está no Kant,
mais perto do nada.”

A voz continua. Afinal foi:
“agora está no campo,
mais perto do nada.”

Clareza
     beleza: 
           inimigas.






welcome, idade adulta







Levávamos o sol no peito
explodindo em juventude
e na pele
meu amor
um murmúrio de flores e danças.

Lembras-te
desse tempo sem passado
em que todos os dias
eram amanhã?

As primeiras rugas
dois ou três cabelos brancos
e rotinas das nove às cinco
gritam agora um silêncio crescente;

denunciam cansaço,
a nossa nova habitação.







passeios com alguma dose de aleatoriedade






às vezes ao passar enfio
as mangas nas maçanetas
ou melhor
as maçanetas nas mangas

não é surrealismo
é distração

diria Freud talvez
que assim preso concretizo
o limbo que sou

terra de ninguém
ambiguidade sem remédio
inexpugnável outro



*



compro um regador de latão
recuso o saco
levo-o na mão

olham-me estranhamente
eis sem o saco
um homem transparente




*




agora há na cidade um sistema
de bicicletas partilhadas

usamos arrumamos respeitamos
e elas ali continuam disponíveis
viagem após viagem
aguardando nova vida

pena assim não ser
com as almas




*




homem sem utopias
cínico
homem de uma só utopia
totalitário

mais vale aguardar

lutar com pequena grandeza
e nos intervalos
quando a desistência ameaça
obter ânimo no sushi all you can eat

olhar o mundo com a alma
porque às vezes um verso
esconde-se vadio
entre os sacos do supermercado

perceber enfim
é divina a transitoriedade
e uma dádiva o poema
que em território inóspito sem hora marcada
enfrenta corajoso a angústia







recordações de verão







Enquanto dança
faz a artista de rua
balões de sabão gigantes.

Uns rebentam
outros são rebentados
e há ainda aqueles que
sobem e sobem:

utópica resistência.



*



vi um filme da marvel
intitulado homem-formiga

sou parecido mas só com super-angústias
ensurdecedoras na minha pequenez

força de vontade
esperança média de vida
esperança média na vida
esperança na vida média

o verdadeiro heroísmo
olha de frente a tragédia



*



folheio leio penso
pouso o livro

mergulho no charco como
um hipopótamo

numa tarde de verão
a alteridade revela-se
à beira da piscina






sábado, 8 de dezembro de 2018

Homenagem ao meu pai no dia do seu 70º aniversário







Mando arranjar o relógio
que o meu pai me deu.

Dizem que não tem conserto.
Insisto.
É preferível um novo.
Resisto:

mais do que medir
o tempo que passa
este relógio ilumina
a cada instante
o tempo que é.

Entre pai e filho
pulsa sem cessar
a quimérica infinitude.