quarta-feira, 14 de março de 2018

quinze novos






1

o cúmulo da frustração
é ficar desiludido por não me sair o euromilhões
apesar de nunca jogar.



2

aviso:
a ligação lógica das meias num par coerente
pode ser matéria-prima para um poema
caso o quotidiano sufoque.



3

com muito wifi
e faturas com NIF
talvez eliminemos
a própria dor.



4

comprei um novo porta-chaves
majestoso
até as chaves parecem mais elegantes

por mais que eu queira
a vida não cabe dentro dele
só as chaves

as portas –
isso é outra história.



5

é útil a fita-cola
conserta
fixa
une

devia servir para a existência.



6

ecrãs tácteis seguem-nos para todo o lado

pessoas notícias sons cores
na ponta dos dedos o império

talvez
no meio desta azáfama
sem que ninguém se apercebesse
alguém tenha já resolvido
o problema filosófico do livre-arbítrio.



7

na televisão
corpos esculturais numa
ilha deserta

aqui no self-service
a classe trabalhadora almoça
febras.



8

os meus poemas são curtos

escrevo como vivo:
um bocadinho de cada vez.



9

o grande problema contemporâneo
é o youtube ser
mais divertido que a vida
e cansar menos.



10

tanto eu
como o gajo ao canto da sala
falamos com os jogadores de futebol

como rezar –
sabemos que Ele não nos ouve
mas não conseguimos evitar.



11

limpo o carro com rigor

daqui a meia hora
higienicamente
posso morrer na estrada

é uma possibilidade que espero estar
excluída da minha noção completa –
no tempo de Leibniz
não havia automóveis.



12

leio atentamente
a etiqueta com o preço
de um esparregado ultracongelado
e penso
que tudo na vida
são etiquetas

tirana transitoriedade.



13

oiço uma sirene ao fundo
e não sei
se é um veículo de emergência
ou a minha alma a fugir-me



14

não gosto de limpar
custa-me
que a existência
largue coisas
pelo chão.



15

imensa gente agora
publica livros de culinária e fitness
ao meu livro de poemas vou chamar
quinze receitas de iogurtes caseiros
só para enganar.