Soneto da conjugalidade
O nosso amor é d'ontem e d'agora;
a teu lado quero todo o futuro.
Mas por favor, meu doce, sem demora:
não mais exijas este afã tão duro.
Às vezes tento mas fico de fora
do perfeito agir mais belo e puro.
Mereço pois censura em boa hora
porém nunca - jamais! - em vil tom d' urro.
O que quero dizer com esta glosa
é que sei que no atraso quebrei leis
e a confiança da qual meu fazer goza.
Mas todo o amor que dura, bem sabeis,
vive muito mais de uma voz bondosa
do que desses sinais e sons cruéis.
Soneto numa reunião
A partilha do PC indicou
o ano de dois mil cento e vinte sete,
avanço pelo qual tudo bloqueou
e dissemos adeus à internet.
Perguntei-me em silêncio o qu' enfim sou
e se viver não mais é qu' este frete
recordando que cedo sei que vou,
longe de dois mil cento e vinte e sete.
O terrível murmúrio "tudo passa..."
sem dó interrompeu meu quotidiano
com mistérios que sempre o tempo laça.
E seja eu pouco ou áureo soberano
nada vale o vigor do que bem faça
no eterno devir de cada ano.
uns dias melhor outros dias pior
domingo, 5 de janeiro de 2025
comecei a escrever sonetos
domingo, 14 de julho de 2024
zen na urbe
revendo um caderno antes de o arrumar
revelam-se
angústias neuroses
sonhos lapsos
desejos pulsões
que Deus não exista
ficando só entre dois
o laico milagre da palavra.
quarta-feira, 10 de julho de 2024
isto há coisas que realmente uma pessoa não sabe
No centro comercial
alguém pergunta por uma loja;
"deixou de existir",
responde a funcionária.
como assim, se ainda
dela se fala? como pode
o inexistente ser mencionado?
sim, bem sei:
existir como coisa
ou como ideia
constituem modos diferentes de ser.
Num restaurante de bairro
chamado "Os Luíses"
contam-me que um deles morreu
com cancro no cérebro.
como a loja do centro comercial,
deixou de existir
ou, se preferirmos,
já só o faz como ideia.
Meu amor,
revela-me o indizível;
só Eros nos dá
a ilusão de significado.
vem, mulher,
vem acreditar comigo.
sábado, 4 de maio de 2024
desde um sábado bracarense, porque não só de apresentação de manuais escolares se faz a vida
confissão
admito: antes
de devolver à biblioteca
um livro novo,
fico com o marcador:
âncora de um
vestígio,
derradeiro
grito de permanência.
*
da cura
angústia
deixo que te
sentes no sofá da sala
mas já não te
ofereço o corpo
*
promessa
há ainda mais dias
com o sol nas mãos
a praia entrará no peito
e a rosa das águas
será ave longínqua
dirás
que bem que cheiram
as folhas do eucalipto
responderei
que o odor é só
o silêncio
que nossos corpos habitam
*
ego
na tasca, um velho
gaba o seu passado.
exagera e exorta
escamoteando que a realidade –
esse uno insondável a que resistimos –
sem ele prosseguirá.
de súbito, compreendo:
tão ridículo quanto este homem antigo
que sonoramente proclama o seu passado
é este homem que escreve
e tantas vezes em silêncio
proclama o seu futuro.
segunda-feira, 15 de janeiro de 2024
quarta-feira, 3 de janeiro de 2024
Locke sem sense data (primeiro do ano)
John Locke morreu
enquanto uma jovem aluna casada,
numa paixão mútua não consumada,
lhe lia os salmos.
Assim, pairando na imaculada magia
da palavra dita sem toque,
se extinguiu o pai do empirismo.
terça-feira, 26 de dezembro de 2023
não-cartesiano
Disse Descartes que o bom senso
está perfeitamente distribuído;
lamento que assim não seja
com o que me é interdito
pela ordem natural do mundo:
assobiar
fazer uma pedra ressaltar na água
soprar balões de pastilha elástica.
sábado, 18 de novembro de 2023
revolucionária
a gaveta perra
resiste à abertura
insiste na lentidão
quarta-feira, 8 de novembro de 2023
em Moscavide
a pequena oficina de bicicletas
mudou de dono.
é diferente o bigode
diversa a estatura
e, diria até,
divergente o estilo.
nada que disfarce,
contudo,
os mistérios que permanecem:
a roda
a liberdade de pedalar
e o que permanece no que muda.
domingo, 5 de novembro de 2023
perseverança
insistir na conservação
perante o inexorável fluxo
que degrada a matéria -
eis o gesto convicto
da filosofia do taparuere.
segunda-feira, 18 de setembro de 2023
update de verão no primeiro dia de aulas
hay que vivir combatiéndose
enquanto sou atendido,
entra na barbearia um pobre coitado;
cabisbaixo e desistente,
perde-se em queixumes.
ao sair, trocando de lugar,
dirijo-lhe um altivo boa tarde,
surpreendido pela minha própria frieza.
já na rua, compreendo:
por momentos não soube
se falava com outro
ou com aquela parte de mim
que, alheia, me coabita.
cura
na televisão, um homem
brinca com leões.
ganhou a sua confiança,
aprendeu os seus enigmas.
assim, já sem receio
perante a ferocidade,
convivo com os meus fantasmas.
terça-feira, 29 de agosto de 2023
em escala
constituem-me
a efervescência de Buenos Aires
e a melancolia de Lisboa.
filho de imigrantes,
nasci ali
de onde só parcialmente sou
e sou parcialmente
de acolá onde não nasci.
português que olha o Atlântico?
porteño com saudades do Tejo?
não sei, mas viajo.
sim, é verdade:
todo eu sou apenas metade;
mas, afinal de contas,
sou metade inteira.
sábado, 10 de junho de 2023
uma homenagem a eros
no mesmo dia,
uma pesada nota fiscal
e o enterro de um familiar.
nothing is certain
except death and taxes
mas talvez,
entre o Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares
e o Cemitério Paroquial da Aldeia de Paio Pires,
haja ainda a liberdade da mão.
a mão, essas mãos,
as de Anaxágoras quando nos disse
que devido a elas pensamos.
a mão, essas tuas mãos
as minhas junto às tuas.
gesto-futuro
que combatendo o férreo destino
escreve
agarra
ama.
sábado, 3 de junho de 2023
relembrando um poema escrito em abril de 2021
monoteísmo
chega o desconfinamento
e regressa o culto.
filas e filas aguardam
soberana bênção:
a posse de um item
obtido no shopping
numa tarde de domingo.
quinta-feira, 18 de maio de 2023
declaração de amor ao carente amor pelo saber
Quando - ou se - algum dia a filosofia acabar
e todos os conceitos ficarem finalmente isentos
de ambiguidade e especulação,
duas hipóteses haverá:
ou teremos alcançado o cume do progresso
ou alguém nos estará a enganar a todos.
Parece-me a segunda mais provável
e por isso encaro o filosofar
como ato de vigilância contra disfarces.
sábado, 6 de maio de 2023
depois de ler um livro de um astrofísico
descobriu Einstein
que a gravidade distorce o tempo
e não há um agora universal.
por isso
morrerei em instante nenhum,
sob o ponto de vista das estrelas.
quinta-feira, 20 de abril de 2023
lembrança de um pré-socrático num espaço verde urbano
sento-me no mesmo jardim
de há dez anos.
mudou ele
mudei eu
e estou em paz,
Heraclito -
ficarias orgulhoso
e juntos mergulharíamos
nesta tarde citadina.
sábado, 12 de novembro de 2022
encarnando Freud
Às vezes, ao passar nos umbrais
enfio, distraído,
as maçanetas nas mangas.
Diria Freud, talvez
que assim preso concretizo
o limbo que sou:
terra de ninguém,
ambiguidade sem remédio,
inexpugnável outro.
quarta-feira, 7 de setembro de 2022
a propósito do não-coisas, do senhor Han
quinta-feira, 6 de janeiro de 2022
sobre a fuga
aí
onde se cruzam
a pele
a morte
o instante
o
poema foge
quinta-feira, 5 de agosto de 2021
homenagem a Olga Prats
ELEVAÇÃO
Sorriso
música
abraço:
os três se fundiam
nessa casa fora de casa
que era, em criança,
encontrar a Olga.
Corria na sua direção,
como se colocar os meus braços
à volta de quem assim tocava o piano
me concedesse um pouco de eternidade.
Os anos passaram,
fui a menos concertos, deixei de correr
mas o abraço, esse, permaneceu,
ensinando-me a cada momento que,
nesta finitude de ser,
há raras pessoas
que nos elevam para lá do tempo.
terça-feira, 18 de maio de 2021
interpelação
somos dois
no labirinto da tarde
e se experimentássemos a cintura
assistindo à morte das sereias?
sexta-feira, 7 de maio de 2021
(des)arrumações de papéis
os corpos eram início
todas as manhãs
tinham o nosso nome
e eu sabia o caminho para casa
somente guiado pelo teu gemido
sábado, 1 de maio de 2021
Layoff ou a esperança de desconfinar
nos rostos e nas cadeiras vagas
nos corpos caminhando lentos pelas ruas
nas placas vende-se arrenda-se for sale for rent
no asfalto despido nas carruagens do metro quase desertas
no silêncio em que outrora se sentava
a artista de rua
na espera pelo cliente que não vem não chega
nas portas fechadas nas arrumações feitas
nos armazéns cheios e nas montras vazias
na mudez que aguarda em cada esquina
no semblante carregado de uma cidade
que era festa:
em todos os lugares
se impõe o espectro de gente
descartada
suspensa
adiada
dessa gente a nossa gente
que pôs um volto já na vida
sem saber se é já
sem saber se é nunca.
abril de 2021
sábado, 2 de janeiro de 2021
homenagem a Carlos do Carmo (do baú - 2012)
Às oito entram na escola,
na mochila livros e o amanhã;
no chão um joelho que se esfola
é presságio duma coragem sã.
O novo torna-se ancião,
é natural que tudo finde;
querem lá saber de tal reflexão,
quem manda na terra é o berlinde.
No pátio a bola é rainha, criança... (refrão)
meninas traçam a linha da trança;
esta gente é tua e minha - esperança!
Que o tempo está na ponta da lança.
Um quer ser futebolista,
a outra astronauta;
no fim somos todos fadistas:
a noss’ alma não nos falta.
Ó tu que brincas e saltas,
dá-me algo dessa magia,
traz-me essa nuvem tão alta
onde a vida é irmã do dia.
domingo, 6 de dezembro de 2020
delivery ou a sociedade das plataformas
extensão da mota
acessório da aplicação
eis tudo
o que o gajo da glovo é
segunda-feira, 22 de junho de 2020
entre burocracias educacionais
sábado, 13 de junho de 2020
recordando o verão passado, com Wittgenstein
quarta-feira, 3 de junho de 2020
decorre o período de entrega da declaração de IRS
segunda-feira, 18 de maio de 2020
desconfinamento
quarta-feira, 13 de maio de 2020
astronomia
segunda-feira, 4 de maio de 2020
mistérios naturais no início da semana (ou relembrando Sines)
domingo, 16 de fevereiro de 2020
do eterno retorno das segundas-feiras
domingo, 29 de dezembro de 2019
memórias de La Paz
sábado, 9 de novembro de 2019
fortuito
Quem será esse outro
com quem fui confundido?
Quem és, desconhecido semelhante,
recordando-me tudo o que não sou?
Entre o hambúrguer e o café,
perdi a singularidade.
sexta-feira, 20 de setembro de 2019
david, da vida, duvida, dúvida
quinta-feira, 5 de setembro de 2019
Múltiplos eventos diários de índole diversa
que nos azuis, exceto
eu ser dos verdes.
como bom guarda-redes,
agarro sempre de volta.
olhas-me nos olhos e adormeces.
O casal de idosos
na mesa de uma esplanada.
Calados, partilham somente
quietude e notícias.
A sua presença acusa:
terça-feira, 9 de abril de 2019
abril, águas mil
antes de se desfazer para sempre no chão”,
falo das gotas de chuva
ou da vida de mulheres e homens?
domingo, 24 de março de 2019
declaração do primeiro trimestre
passa pelo pai argentino
e chega até mim em Lisboa –
há mochilas às costas,
lágrimas em partidas,
muitas milhas percorridas
na procura de um lugar para Ser.
segunda-feira, 31 de dezembro de 2018
poemas de Buenos Aires
*
*
procuro pergunto
oiço comparo.
de eco milenar:
sou estrangeiro
quinta-feira, 13 de dezembro de 2018
Querido Marco Aurélio,
neste restaurante de bairro
um discurso apologético
mushroom burguer:
estimado imperador,
perspetivas da cidade
por uma alma que sucumbe.