domingo, 5 de janeiro de 2025

comecei a escrever sonetos






Soneto da conjugalidade


O nosso amor é d'ontem e d'agora;
a teu lado quero todo o futuro.
Mas por favor, meu doce, sem demora:
não mais exijas este afã tão duro.

Às vezes tento mas fico de fora
do perfeito agir mais belo e puro.
Mereço pois censura em boa hora
porém nunca - jamais! - em vil tom d' urro.

O que quero dizer com esta glosa
é que sei que no atraso quebrei leis
e a confiança da qual meu fazer goza.

Mas todo o amor que dura, bem sabeis,
vive muito mais de uma voz bondosa
do que desses sinais e sons cruéis.




Soneto numa reunião

A partilha do PC indicou
o ano de dois mil cento e vinte sete,
avanço pelo qual tudo bloqueou
e dissemos adeus à internet.

Perguntei-me em silêncio o qu' enfim sou
e se viver não mais é qu' este frete
recordando que cedo sei que vou,
longe de dois mil cento e vinte e sete.

O terrível murmúrio "tudo passa..."
sem dó interrompeu meu quotidiano
com mistérios que sempre o tempo laça.

E seja eu pouco ou áureo soberano
nada vale o vigor do que bem faça
no eterno devir de cada ano.










domingo, 14 de julho de 2024

zen na urbe



I

alguns carros param ao sinal vermelho
e outros, na transversal,
aceleram ao sinal verde.


II

a passeadora de cães
leva muitos
e nenhum ladra.


III

a porta do autocarro abre-se
antes de completar a travagem
e alguns passageiros
põem logo um pé de fora.


IV

o peão atravessa a rua
fora da passadeira; um homem
trava o carro e urra.


V

crianças saem da escola,
ascendem risos e gritos.
uma velha funcionária, à porta,
observa.


VI

esta estrada vai
até onde os olhos
não alcançam.


VII

passam ao longe duas estudantes
carregando malas
na chegada à residência universitária.


VIII

o camião da fruta
para todas as noites no mesmo sítio,
é descarregado
e parte.


IX

no estendal: uma toalha dobrada
sobre si mesma. o vento
por vezes muda o lugar das coisas.


X

cantam os homens das obras e,
na varanda em frente,
dois gatos ouvem atentos.



revendo um caderno antes de o arrumar





invade-me um sono
que não vem do trabalho
nem de dias longos
ou noites mal dormidas.

é murmúrio que recorda
que enfrento o infinito
com o olhar de quem morre.



*



no divã da psicanálise
revelam-se
angústias neuroses
sonhos lapsos
desejos pulsões

e torna-se uma pena
que Deus não exista
ficando só entre dois
o laico milagre da palavra.




quarta-feira, 10 de julho de 2024

isto há coisas que realmente uma pessoa não sabe

 


No centro comercial
alguém pergunta por uma loja;
"deixou de existir", 
responde a funcionária.

como assim, se ainda
dela se fala? como pode
o inexistente ser mencionado?

sim, bem sei:
existir como coisa
ou como ideia
constituem modos diferentes de ser.

Num restaurante de bairro
chamado "Os Luíses"
contam-me que um deles morreu
com cancro no cérebro.

como a loja do centro comercial,
deixou de existir
ou, se preferirmos,
já só o faz como ideia.

Meu amor,
revela-me o indizível;
só Eros nos dá
a ilusão de significado.

vem, mulher,
vem acreditar comigo.





sábado, 4 de maio de 2024

desde um sábado bracarense, porque não só de apresentação de manuais escolares se faz a vida




confissão

admito: antes de devolver à biblioteca
um livro novo, fico com o marcador:

âncora de um vestígio,
derradeiro grito de permanência.


*


da cura

angústia
deixo que te sentes no sofá da sala
mas já não te ofereço o corpo



*



promessa

há ainda mais dias
com o sol nas mãos

a praia entrará no peito
e a rosa das águas
será ave longínqua

dirás
que bem que cheiram
as folhas do eucalipto

responderei
que o odor é só
o silêncio
que nossos corpos habitam



*



ego

na tasca, um velho
gaba o seu passado.

exagera e exorta
escamoteando que a realidade –
esse uno insondável a que resistimos –
sem ele prosseguirá.

de súbito, compreendo:
tão ridículo quanto este homem antigo
que sonoramente proclama o seu passado
é este homem que escreve
e tantas vezes em silêncio
proclama o seu futuro.




segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

santidade

 


Santo Agostinho escreve
sobre tédio e medo.

Quero estar ali,
chorar com ele.

Como pode o que sou
esgotar-se
no fino limite de um corpo?







quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

Locke sem sense data (primeiro do ano)

 




John Locke morreu
enquanto uma jovem aluna casada,
numa paixão mútua não consumada,
lhe lia os salmos.

Assim, pairando na imaculada magia
da palavra dita sem toque,
se extinguiu o pai do empirismo.





terça-feira, 26 de dezembro de 2023

não-cartesiano

 




Disse Descartes que o bom senso
está perfeitamente distribuído;

lamento que assim não seja
com o que me é interdito
pela ordem natural do mundo:

assobiar
fazer uma pedra ressaltar na água
soprar balões de pastilha elástica.







sábado, 18 de novembro de 2023

revolucionária

 


a gaveta perra
resiste à abertura
insiste na lentidão






quarta-feira, 8 de novembro de 2023

em Moscavide




a pequena oficina de bicicletas
mudou de dono.

é diferente o bigode
diversa a estatura
e, diria até,
divergente o estilo.

nada que disfarce,
contudo,
os mistérios que permanecem:

a roda
a liberdade de pedalar
e o que permanece no que muda.









domingo, 5 de novembro de 2023

perseverança

 




insistir na conservação
perante o inexorável fluxo
que degrada a matéria - 
eis o gesto convicto
da filosofia do taparuere.







segunda-feira, 18 de setembro de 2023

update de verão no primeiro dia de aulas


hay que vivir combatiéndose


enquanto sou atendido,
entra na barbearia um pobre coitado;
cabisbaixo e desistente,
perde-se em queixumes.

ao sair, trocando de lugar,
dirijo-lhe um altivo boa tarde,
surpreendido pela minha própria frieza.

já na rua, compreendo:
por momentos não soube
se falava com outro
ou com aquela parte de mim
que, alheia, me coabita.





cura


na televisão, um homem
brinca com leões.

ganhou a sua confiança,
aprendeu os seus enigmas.

assim, já sem receio
perante a ferocidade,
convivo com os meus fantasmas.






terça-feira, 29 de agosto de 2023

em escala




constituem-me
a efervescência de Buenos Aires
e a melancolia de Lisboa.

filho de imigrantes,
nasci ali
de onde só parcialmente sou
e sou parcialmente
de acolá onde não nasci.

português que olha o Atlântico?
porteño com saudades do Tejo?
não sei, mas viajo.

sim, é verdade:
todo eu sou apenas metade;
mas, afinal de contas,
sou metade inteira.





sábado, 10 de junho de 2023

uma homenagem a eros





no mesmo dia,
uma pesada nota fiscal
e o enterro de um familiar.

nothing is certain
except death and taxes

mas talvez,
entre o Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares
e o Cemitério Paroquial da Aldeia de Paio Pires,
haja ainda a liberdade da mão.

a mão, essas mãos,
as de Anaxágoras quando nos disse
que devido a elas pensamos.
a mão, essas tuas mãos
as minhas junto às tuas.

gesto-futuro
que combatendo o férreo destino
escreve
agarra
ama.





sábado, 3 de junho de 2023

relembrando um poema escrito em abril de 2021




monoteísmo

chega o desconfinamento
e regressa o culto.

filas e filas aguardam
soberana bênção:

a posse de um item
obtido no shopping
numa tarde de domingo.









quinta-feira, 18 de maio de 2023

declaração de amor ao carente amor pelo saber

 


Quando - ou se - algum dia a filosofia acabar
e todos os conceitos ficarem finalmente isentos
de ambiguidade e especulação,
duas hipóteses haverá:

ou teremos alcançado o cume do progresso
ou alguém nos estará a enganar a todos.

Parece-me a segunda mais provável
e por isso encaro o filosofar
como ato de vigilância contra disfarces.





sábado, 6 de maio de 2023

depois de ler um livro de um astrofísico

 


descobriu Einstein
que a gravidade distorce o tempo
e não há um agora universal.

por isso
morrerei em instante nenhum,
sob o ponto de vista das estrelas.





quinta-feira, 20 de abril de 2023

lembrança de um pré-socrático num espaço verde urbano

 

sento-me no mesmo jardim
de há dez anos.

mudou ele
mudei eu

e estou em paz,
Heraclito - 

ficarias orgulhoso
e juntos mergulharíamos
nesta tarde citadina.







sábado, 12 de novembro de 2022

encarnando Freud






Às vezes, ao passar nos umbrais
enfio, distraído,
as maçanetas nas mangas.

Diria Freud, talvez
que assim preso concretizo
o limbo que sou:

terra de ninguém,
ambiguidade sem remédio,
inexpugnável outro.






quarta-feira, 7 de setembro de 2022

a propósito do não-coisas, do senhor Han







ecrãs tácteis seguem-nos
pessoas
notícias
sons
cores
o império 
na ponta 
dos dedos

talvez no meio desta azáfama
sem que ninguém se apercebesse
alguém tenha já resolvido
o problema filosófico do livre-arbítrio





quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

sobre a fuga

 




aí onde se cruzam

a pele
a morte
o instante

o poema foge










quinta-feira, 5 de agosto de 2021

homenagem a Olga Prats





ELEVAÇÃO


Sorriso

música

abraço:


os três se fundiam

nessa casa fora de casa

que era, em criança,

encontrar a Olga.


Corria na sua direção,

como se colocar os meus braços

à volta de quem assim tocava o piano

me concedesse um pouco de eternidade.


Os anos passaram,

fui a menos concertos, deixei de correr

mas o abraço, esse, permaneceu,

ensinando-me a cada momento que,

nesta finitude de ser,

há raras pessoas

que nos elevam para lá do tempo.






terça-feira, 18 de maio de 2021

interpelação

 


somos dois
no labirinto da tarde

e se experimentássemos a cintura
assistindo à morte das sereias?




sexta-feira, 7 de maio de 2021

(des)arrumações de papéis

 



os corpos eram início

 

todas as manhãs

tinham o nosso nome

 

e eu sabia o caminho para casa

somente guiado pelo teu gemido





sábado, 1 de maio de 2021

Layoff ou a esperança de desconfinar

 

nos rostos e nas cadeiras vagas
nos corpos caminhando lentos pelas ruas
nas placas vende-se arrenda-se for sale for rent
no asfalto despido nas carruagens do metro quase desertas 
no silêncio em que outrora se sentava
a artista de rua

na espera pelo cliente que não vem não chega
nas portas fechadas nas arrumações feitas
nos armazéns cheios e nas montras vazias
na mudez que aguarda em cada esquina
no semblante carregado de uma cidade
que era festa:

em todos os lugares
se impõe o espectro de gente
    descartada
        suspensa
            adiada

dessa gente a nossa gente
que pôs um volto já na vida

    sem saber se é já
    sem saber se é nunca.

abril de 2021

sábado, 2 de janeiro de 2021

homenagem a Carlos do Carmo (do baú - 2012)




Às oito entram na escola,

na mochila livros e o amanhã;

no chão um joelho que se esfola

é presságio duma coragem sã.

 

O novo torna-se ancião,

é natural que tudo finde;

querem lá saber de tal reflexão,

quem manda na terra é o berlinde.

 

No pátio a bola é rainha, criança...                                         (refrão)

meninas traçam a linha da trança;

esta gente é tua e minha  - esperança!

Que o tempo está na ponta da lança.         

 

Um quer ser futebolista,

a outra astronauta;

no fim somos todos fadistas:

a noss’ alma não nos falta.

 

Ó tu que brincas e saltas,

dá-me algo dessa magia,

traz-me essa nuvem tão alta

onde a vida é irmã do dia.

domingo, 6 de dezembro de 2020

delivery ou a sociedade das plataformas





extensão da mota
acessório da aplicação
prolongamento da mala térmica
eis tudo
o que o gajo da glovo é

já no cimo da escadaria recebe
um boa noite e a gorjeta

mas não ainda e quiçá nunca
a dignidade que só germina
aí onde a exploração cessa

extensão
acessório
prolongamento
eis tudo
o que o gajo da glovo é





segunda-feira, 22 de junho de 2020

entre burocracias educacionais







a vida é só a palavra do momento
procuro vestígios
de outros mundos outras letras






sábado, 13 de junho de 2020

recordando o verão passado, com Wittgenstein








A senhora diz ao colega
“pão e azeitonas para três”;
eis o início
das Investigações Filosóficas do Wittgenstein.

Pedi o bitoque sem batatas
mas, no meio do arroz, veio uma
frita
isolada
desengonçada,
recordando-me quem sou.












quarta-feira, 3 de junho de 2020

decorre o período de entrega da declaração de IRS








Dois cinco nove
cinco seis um
um três quatro.

Quando eu morrer
também o meu número fiscal
cessará

recebido de braços abertos
pelo conjunto crescente
das sequências esquecidas.






segunda-feira, 18 de maio de 2020

desconfinamento








os miúdos correm na rua
jogam à bola com o céu
fronteira inacabável








quarta-feira, 13 de maio de 2020

astronomia








Detetaram neutrinos,
fugidias partículas subatómicas,
vindos de uma galáxia a dois mil milhões de anos-luz.

No tempo em que vivia,
a minha mãe gostava muito de ciência e explicava:
eis o que a luz percorre num ano.

Não acredito em deus,
mas os neutrinos chegam de muito longe
e neles oiço a voz desta mulher que indaga.







segunda-feira, 4 de maio de 2020

mistérios naturais no início da semana (ou relembrando Sines)







a brecha da Arrábida é uma rocha
com pedras coloridas dentro

mistério que me sussurra todos os outros






domingo, 16 de fevereiro de 2020

do eterno retorno das segundas-feiras







“Onde estou?”, pergunto à funcionária da escola,
esperando um número de sala e a chave,
mas desejando intimamente
que de repente ela esclareça todos os mistérios,
o porquê de uma vida humana sob as estrelas,
a razão dos séculos findos e por vir.

“É na dezanove, professor”.
E a vida continua, numa manhã de segunda-feira.






domingo, 29 de dezembro de 2019

memórias de La Paz







Na minha mão sobre a mesa
pões a tua. São ainda jovens,
estas mãos que amam.

Esqueçamos que um dia 
desaparecerão e, por ora,
entrelacemos os dedos.

Quando menos é esperada,
a eternidade visita-nos
à volta de um café acabado de servir.





sábado, 9 de novembro de 2019

fortuito







Enquanto almoço na esplanada,
ao longe um rapaz acena e aproxima-se,
antes de constrangido voltar para trás,
ciente do seu lapso – não o conheço.

Quem será esse outro
com quem fui confundido?
Quem és, desconhecido semelhante,
recordando-me tudo o que não sou?

Entre o hambúrguer e o café,
perdi a singularidade.








sexta-feira, 20 de setembro de 2019

david, da vida, duvida, dúvida







Tiro a senha, espero
pelo registo criminal;
vem limpo, como sempre.

E esta angústia, as mágoas
que criei, o que quis ser
e não sou, em que parte de mim
registo estes pequenos crimes?




*




Quando entro no quarto devagar
e enquanto dormes tiro a roupa
e fico nu, em pé, quieto,
e tudo está escuro
e quase nenhum barulho vem lá de fora,
quem é este homem que em vão tenta
observar-te,
quem sou eu quando assim
me ignoro?





quinta-feira, 5 de setembro de 2019

Múltiplos eventos diários de índole diversa








Acaba a final da Taça,
buzinas invadem as ruas.

A minha alegria é vã:
nada há de melhor nos verdes
que nos azuis, exceto
eu ser dos verdes.

Festejo, finto a insignificância
e remato a angústia que,
como bom guarda-redes,
agarro sempre de volta.



*



Da beleza, não conheço a essência,
mas a circunstância: deitada, de manhã,
olhas-me nos olhos e adormeces.



*


O casal de idosos
lê um jornal após outro
na mesa de uma esplanada.

Calados, partilham somente 
quietude e notícias.

A sua presença acusa:
a minha correria afugenta
esse encontro em que o tempo
é só um virar de página.





terça-feira, 9 de abril de 2019

abril, águas mil







Se digo “provém do céu,
faz uma airosa e curta viagem
antes de se desfazer para sempre no chão”,
falo das gotas de chuva
ou da vida de mulheres e homens?






domingo, 24 de março de 2019

declaração do primeiro trimestre












“Chegou o meu amor”,
dizes carinhosa quando abro a porta de casa,
cansado com uma carga invisível:
frustrações, insuficiências,
entranhada pequenez
que me controla e afoga.

“Chegou o meu amor”, dizes;
e, por momentos, caio nessa ilusão
de que o que acaba de chegar,
                invadir cada recanto da casa,
                               recobrir as superfícies das coisas,
                                               infiltrar-se nas brechas do soalho,
é, tão somente, o teu amor.



*



No centro do escritório, colocada
logo após a mudança de casa,
uma mesa de campismo:
eis onde escrevo.

Solução inicialmente temporária,
tornou-se permanente e,
agora, afloro o porquê:

                dar corpo às palavras
                é estar sempre pronto para partir.




*




O meu nome completo
tem só duas palavras;

mas no estranho apelido –
que vem do longínquo avô russo,
passa pelo pai argentino
e chega até mim em Lisboa –
há mochilas às costas,
lágrimas em partidas,
muitas milhas percorridas
na procura de um lugar para Ser.


*


Estive sem óculos dois dias,
esquecidos em casa de um amigo.
Tudo ficou mais turvo: linhas frágeis,
cores insípidas e, no fundo do olhar,
um permanente cansaço.

O amigo devolveu-me os óculos.
Linhas, cores, cansaço
continuaram iguais –
não há lentes que valham
quando é da alma a miopia.



*


As ovelhas caminham lentamente,
param, enfiam o rosto na terra,
comem  e voltam a caminhar.

Fazem-no em conjunto,
mas cada uma à sua maneira,
irrepetível.

Assim, na curta planície vedada
que observo desde a piscina do hotel rural,
se joga a perpétua tensão
entre a Singularidade e o Mundo.



*



Na mesa de cabeceira,
um livro sobre o cosmos,
outro sobre a psique.

Lado a lado,
quase parecem discutir
o que é mais fascinante:
se a infinitude externa do Universo,
se a infinitude interna da Alma.




segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

poemas de Buenos Aires







As palavras-bússola
entretecem perenes
o enigma de existir.

Quando as oiço
toda a alma é umbral.






*





Eis uma fé agnóstica:
quando me abraças
rezo ao Deus em que não creio
e peço inaudível
que a vida caiba toda no teu peito.






*





Entro na carruagem do metro
e, do outro lado do vidro,
momentâneos no seu afastamento,
o músico de rua e o vendedor ambulante
sentam-se agora no mesmo banco
da estação vazia.

Descansam,
não mais tocando
nem anunciando.

Partilhada em silêncio
parece divina a solidão.




*




Caminho viajo
procuro pergunto
oiço comparo.


É inevitável a sentença
de eco milenar:
sou estrangeiro
o rosto do Outro é minha pátria.




*




Em Buenos Aires o café é servido
com uma bolachinha e um copo de água.

Perante o insanável fervor
há que adoçar e diluir.




*




Judeu sem Deus,
faço da viagem
a minha permanência.

Resisto à intempérie – 
recolho a pouco e pouco
a voz ténue dos vários que sou.





quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

Querido Marco Aurélio,







falas de um génio interior
que eterno nos sobrevive;
quem me dera conversar contigo
no intervalo das tuas batalhas.

Enquanto escrevo
neste restaurante de bairro
um americano extra large faz
um discurso apologético
sobre um hipotético
mushroom burguer:

teremos sempre,
estimado imperador,
conquistas e utopia
utopia e conquistas.










perspetivas da cidade







Passeio pela cidade
uma tarde por aqui
outra por acolá
vagueando.

Nas duas passo porém
pela mesma capela mortuária.
Diferentes protagonistas,
espetáculo igual:

cá fora
uns choram e outros conversam

lá dentro
os inexistentes relembram
que só os sonhos são imortais.



*



No prédio em frente ao meu
agita-se a trepadeira.

Com frágeis raízes
resiste à ferocidade do vento.

Lados da rua,
jogo de espelhos –
a natureza ascende
observada
por uma alma que sucumbe.