domingo, 14 de julho de 2024

zen na urbe



I

alguns carros param ao sinal vermelho
e outros, na transversal,
aceleram ao sinal verde.


II

a passeadora de cães
leva muitos
e nenhum ladra.


III

a porta do autocarro abre-se
antes de completar a travagem
e alguns passageiros
põem logo um pé de fora.


IV

o peão atravessa a rua
fora da passadeira; um homem
trava o carro e urra.


V

crianças saem da escola,
ascendem risos e gritos.
uma velha funcionária, à porta,
observa.


VI

esta estrada vai
até onde os olhos
não alcançam.


VII

passam ao longe duas estudantes
carregando malas
na chegada à residência universitária.


VIII

o camião da fruta
para todas as noites no mesmo sítio,
é descarregado
e parte.


IX

no estendal: uma toalha dobrada
sobre si mesma. o vento
por vezes muda o lugar das coisas.


X

cantam os homens das obras e,
na varanda em frente,
dois gatos ouvem atentos.



revendo um caderno antes de o arrumar





invade-me um sono
que não vem do trabalho
nem de dias longos
ou noites mal dormidas.

é murmúrio que recorda
que enfrento o infinito
com o olhar de quem morre.



*



no divã da psicanálise
revelam-se
angústias neuroses
sonhos lapsos
desejos pulsões

e torna-se uma pena
que Deus não exista
ficando só entre dois
o laico milagre da palavra.




quarta-feira, 10 de julho de 2024

isto há coisas que realmente uma pessoa não sabe

 


No centro comercial
alguém pergunta por uma loja;
"deixou de existir", 
responde a funcionária.

como assim, se ainda
dela se fala? como pode
o inexistente ser mencionado?

sim, bem sei:
existir como coisa
ou como ideia
constituem modos diferentes de ser.

Num restaurante de bairro
chamado "Os Luíses"
contam-me que um deles morreu
com cancro no cérebro.

como a loja do centro comercial,
deixou de existir
ou, se preferirmos,
já só o faz como ideia.

Meu amor,
revela-me o indizível;
só Eros nos dá
a ilusão de significado.

vem, mulher,
vem acreditar comigo.